terça-feira, 6 de abril de 2010

Espíritos

Quando eu era criança, morria de medo do Chico X. Mais da peruca e do aspecto que ela lhe dava, do que dos espíritos que poderiam estar ali em volta.

(PARÊNTESE)

O meu top 5 do terror infantil era dominical:

1 – Flávio Cavalcanti

2 – Chico Xavier e a franja sebosa de sua peruca

3 – Cura do câncer, ou novo câncer, no Fantástico

4 – Extraterrestres, no programa do Flávio Cavalcanti ou no Fantástico

5 – Troca de presidentes (militares)

(FECHA PARÊNTESE)


Então, agora tem esse filme arrebentando nas bilheterias. Fui ligando pontinhos e revivendo emoções antigas. Quando eu tinha uns 12 anos, meu vizinho duas casas pra baixo era um gatinho de 18/19 anos. Chamava-se Emerson, mas o apelido dele era Nando – porque esse era o personagem do Mário Gomes numa novela, acho que Vereda Tropical, e ele era a cara do Mário Gomes: olhos azuis, alto, jeito safado. Às vezes ele se unia a mim na observação das estrelas. Ficávamos os dois sentados no muro da minha casa (paralelamente meu pai nos observava, atrás da cortina, e a gente fazia de conta que não sabia). Não conversávamos sobre grande coisa, pois pra observar as estrelas fazíamos silêncio, apontando aqui e ali as Três Marias, a estrela Dalva; nos unia o desprezo ao interior, à pequenez da cidade pequena. Quando falava, gostava de exagerar histórias sobre namoradas, festas e outros mistérios que só aconteciam no 2º grau. Bem, éramos vizinhos.

Pois o Emerson, tadinho, morreu numa curva da estrada que levava à velha fábrica de papel. Num carro emprestado do amigo, bêbado, de madrugada.

Não sei porque não fui ao enterro. Fiquei muito triste, mas introjetei. Lá no interior de onde eu venho as pessoas não se deixam pegar sofrendo. Estranho isso. Parece que é feio. Pessoal faz questão de mostrar o quanto antes que a dor foi superada, que é forte pro dia seguinte. Enfim. Foi nesse clima que fui fazer a unha – pela primeira vez na minha vida – com a mãe dele, coisa de uns dois meses depois da morte. Ou menos, talvez. Dona-de-casa, ela virou manicure pra “ter o que fazer” e não pensar muito, foi o que me disse. Claro que não funcionava: a cada cliente que chegava, mostrava a foto do filho que se foi enquanto o outro, caçula – da idade da minha irmã – passava pelo corredor a cada cinco minutos, observando, provavelmente para estar perto quando ela tivesse uma crise de choro. Ou só pra ouvi-la falar do irmão. Pois eu me dirigi à casa dele, de onde eu nunca tinha passado do portão, talvez fascinada pelo sofrimento, ou com vontade de falar e saber mais do Nando, um pouco, de me solidarizar, tudo junto. E a mãe dele cumpriu o roteiro. Chorou enquanto pintava meus dedos de rosa (não me achem cruel de ter ido lá não só pra visitar, mas pra fazer as unhas: eles precisavam de dinheiro), abriu o álbum de fotos, onde eu vi o Nando cabeçudo, bebê.

Daí a mãe – não lembro seu nome – tirou do bolso um papel amassado, datilografado. Uma carta do Nando, psicografada. Ela estava em sua casa, remoendo sua dor, num dia qualquer depois do acidente, e uma senhora bateu à porta e levou uma carta do filho morto. Disse que um vizinho médium estava escrevendo à máquina, entrou em transe e quando viu, lá estava a carta. A tal mulher teria “reconhecido” ou imaginado que o espírito em questão era do Nando.

Só a mãe não via, ou não queria ver, que a carta era uma fraude elaborada por um semi-analfabeto bem intencionado – porque nem se pediu dinheiro em troca. Dizia lá em primeira pessoa que o Nando estava num lugar bom. Que era um lugar de transição porque ele tinha muito o que aprender ainda. Mas que estava em paz, apesar de ter saudade. Que um dia toda a família se reuniria de novo. Que ele estava “olhando” pela mãe. Pedia perdão. Ela lia e chorava. Queria acreditar, coitada.

Todo mundo quer acreditar que está tudo bem.

Então deve ser por isso que dizem “Chico Xavier é amor". Já eu, não creio em espiritismo – nem em qualquer outra religião, como bem sabe quem me conhece. Nem em cartas psicografadas. Este link da Superinteressante conta, em reportagem própria e citando reportagens de época, que o cara tinha uma equipe cujo trabalho era percorrer as filas de desesperados por saber de seus mortos, para tirar deles as informações que depois eram transcritas nas cartas. Mesmo assim, o espírita conquistou uma credibilidade incrível - até testemunho de alma em tribunal foi usado pra inocentar acusado de assassinato (li na Wikipedia e, se foi isso mesmo, deve ser jurisprudência inédita no mundo).

Ok, ele não cobrava pelos manuscritos. Os direitos autorais dos livros de seus espíritos incorporados (afe) eram todos destinados a obras de caridade. Li hoje na Folha que o filme deixa tudo muito aberto – da possibilidade de “santidade” à de picaretagem. Pessoalmente, não creio que se tratasse de um farsante ordinário: acho que uma esquizofrenia-megalômana pode explicar o fenômeno. E do outro lado a necessidade, demasiado humana, de (querer) crer que está tudo bem com quem a gente ama.

10 comentários:

luci disse...

nossa, esses negocios de morte SEMPRE me deixam comovida. senti uma pena enorme desse cara... sozinho... jogado na rua na madrugada... como se fosse meu irmao. serio, eu sou muito besta pra isso, deve ser porque eu tenho pavor de morte alheia. pavor mesmo, sabe. mas entao. eu seria incapaz de dizer a essa mae que a carta era coisa besta. sinceramente. pra mim os homens inventaram deus, bla bla bla, nunca o contrario, MAS... nao me importo ao ver que minha mae, dentro de todas as angustias e merdas que ela tem que aguentar nessa vida, tem um deus pra consola-la. eu nao tenho o direito de tirar essa ilusao dela, sinceramente.

gostei do post...

Cristiane Rangel disse...

Tina, querida, gostei do post. Muito bem escrito. Embora eu seja espírita. Mas aí a discussão já é outra. De qualquer forma já vi muita gente enganar os outros com psicografias e conselhos. Ainda assim minhas crenças pessoais não se abalam.

Caminhante disse...

Resolveu mexer em vespeiro, hein?

Minha família toda é espírita então cresci numa ambiente extremamente favorável a todas essas manifestações. Não sei de nada do Chico, mas as mensagens incorporadas que eu li sempre foram decepcionantes. Uma vez li uma que seria do John Lennon, reescrevendo Imagine. Além da inutilidade dele voltar pra isso, era uma versão tão ruim que...

(Eu tinha medo da música do Globo Reporter. Naquela época, noticiavam muitas coisas policiais)

Ronise Vilela disse...

Falar sobre a morte, tecer teses, credos, enfim, tudo é muito teórico quando não se passa pela experiência real da perda irreversível.
Eu que quase morri, fato, tive a tal experiência de ver a tão famosa luz, e nunca fui espírita, embora confesse minha veia sobrenatural, hoje adormecida pela cruel realidade day by day.
Acho que de alguma forma, quem sente a danada dor da morte de alguém importante na vida, se depara com a única verdade: a de quem vive, morre um dia. Talvez seja por isso, que adotamos dispositivos para suportar a perda: sejam por cartas psicografadas, religião ou algo que o valha!

Amanda disse...

Um dos meus medos de criança era justamente centro espirita! Hehehe! Mas dai minha tia virou espirita e a gente ia na casa dela quando ela recebia santo. Eu ficava estupefada e depois dizia: eu vi, eu vi, os espiritos existem mesmo! Minha tia foi embora e uma tal de Rosinha tomou o lugar dela! Juro que demorei a perceber a possibilidade da minha tia estar mentindo...

Sim, o espiritismo conforta. O problema é que ele conforta tbm no que nao deveria. Ele diz que se vc é podre e rico e seu vizinho vive na miseria, é pq seu vizinho, na outra vida, era uma pessoa muito ruim e vc so esta recebendo os louros das suas boas açoes. Claro que tem nuances e ninguém diz isso assim, na lata, mas é isso mesmo. Meu pai, que é chegado no espiritismo, chegou a dizer que sao os espiritos que escolhem conscientes a familia onde vao nascer. Eu disse que era absurdo e perguntei se as crianças abusadas pelos pais tbm escolhiam e tive a maior decepçao da vida com meu pai quando ele respondeu que sim, elas que escolheram, pra pagar algum tipo de pena. Que decepçao, cara! Se alguém falasse isso aqui na França, seria considerado um Hitler... Alias, espiritismo aqui é considerado seita!

Por isso tanta gente rica é espirita: a religiao tira a culpa delas de ter tanto, enquanto outros tem tao pouco. Eh ou nao é um baita conforto?

carla disse...

Oi, Tina! Eu tinha medo do Chico e de um Livro dos Espíritos véio que minha vó guardava em casa. O medo era tanto que onde fui parar? No centro espírita! rs*
Concordo com a Cristiane (do comentário acima). Seu texto foi muito bem escrito.
A propóstito, doença mental é sempre a primeira hipótese. O Chico foi avaliado por um monte de psiquiatras durante toda a vida e não concluíram que havia doença mental. A dúvida permanece (até e principalmente para os espíritas).

sandra disse...

queridos, qcho que é muito fácil falar de morte como coisa natural da vida,principalmente para os espiritas e espiritualiastas,dificil porém quando a dor assombra nossa porta nos arrancando entes queridos e caros de maneira inesperada e "fora de hora" (ex.a perda de um filho)as concepções mudam brota um esperança mesclada a dor que (só quem passa poderia descrever) antes não imaginável, conceitos sentimentos são a remechidos e mesclados a dor.a concepção do desconhecido do improvavél a crença em continuadade do individuo como eterno e desconchecido, idependente o grau de cultura,toma outros rumos, essa é a reação expontanea do ser humano,existe uma frade muito manjada mas penso que de fundamento, se não for pelo amor, será pela dor....porém sem regras peaples, beijo

Nina Vieira disse...

Eu tambem tinha "medo" do Chico Xavier, por causa da estranha boca dele (e a franja, convenhamos, tambem era bizarra).
O filme eu achei otimo, gostei muito, superou minhas expectativas.
Abraços.

Marissa Rangel-Biddle disse...

Eu tenho medo de textos sobre espiritismo...qualquer coisa magico mitica eu morro de medo. Na minha infancia andei lendo Violetas na Janela, A Cabana de de Pai Tomas e outros que me aterrorizavam por meses. Sim, eu lia tudo que via pela frente e nao tinha pai nem mae para interferir. Eu morria de medo e continua lendo, viciadona. Andava pelas ruas tentando 'ver' se uma ou outra pessoa era mesmo de carne e osso ou espirito.

Ainda bem que larguei de ler livros espiritas porque nem faz sentido eu sendo ateia.

Nunca tinha pensado no Chico Xavier como uma pessoa doente. Interessante levantar esse lado de que ele talvez era esquizio-megalomo.

Jussara disse...

Ha ha ha. Então pra vc o Chico era uma "esquizofrenia-megalômana"? Que fontes sérias as suas, hein? A revista superinteressante e a folha de são paulo. Argh! Tudo bem que vc não acredite em espiritismo nem em nenhuma outra religião, mas vc devia ter pesquisado mais e em fontes idôneas antes de falar besteira sobre o que vc claramente desconhece e ignora. Os espíritos não "incorporam" e não são de ninguém. Quanta bobagem! E quem escreveu a matéria da folha, na qual vc acreditou piamente, não deve ter entendido o filme. Em momento nenhum ele deixa em aberto que podia ser picaretagem.